Uma bela tradução e análise, tirada de http://malprg.blogs.com/francoatirador/2004/03/o_apocalipse_de.html
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O Apocalipse de VALIS
No início de 1974, Philip K. Dick era apenas um escritor original, admirado por seus pares graças a sua inventividade, que tinha conquistado uma legião de fãs ao mesmo tempo em que continuava desconhecido do grande público, e que somente aos poucos começava a levar uma vida razoavelmente confortável, depois de décadas de vacas magras quando, reza a lenda, houve uma época em que ele e a esposa de então (foram cinco no total) tinham que se esforçar para convencer o vendedor de que a comida de cachorro que estavam comprando não era para eles mesmos (outra versão da lenda assegura que era).
Em fevereiro e março daquele ano, contudo, uma série de acontecimentos momentosos virou a vida de Dick de pernas para o ar e seu significado ainda divide seus biógrafos, críticos, amigos e colegas. Alguns acreditam que ele teve uma experiência religiosa genuína, que não desistiu de tentar interpretar pelo resto de seus dias (os cadernos de anotações sobre o evento, batizados pelo próprio PKDick de Exegesis, somam mais de 8000 páginas e nunca foram publicados na íntegra).
Outros garantem que ele simplesmente enlouqueceu.
Dick mesmo chegou a considerar essa possibilidade e, na verdade, quase qualquer teoria concebível para explicar o que ficou conhecido como o Apocalipse de VALIS. Nas páginas da Exegesis, em conversas com amigos ou nas entrevistas que concedeu durante aquele período, Dick ia formando uma pilha de hipóteses e passava de uma para outra, sem jamais chegar a uma conclusão definitiva. Sugeriu que tivesse experimentado um êxtase místico e que tivesse sido contactado por uma inteligência artificial alienígena; que tivesse sido possuído pelo espírito do profeta Elias ou dominado pelos arquétipos do inconsciente coletivo; que tivesse passado por um surto psicótico; que tivesse atingido a iluminação. Que tivesse morrido e ressuscitado.
A terminologia gnóstica misturava-se ao jargão psiquiátrico e ao vocabulário da ficção científica, num esforço conjunto para tornar inteligível algo que desafiava a inteligibilidade e descrever o que ultrapassava a capacidade de descrição. Dick era capaz de invocar na mesma sentença o Dionísio de Nietzsche, Krishna, o pleroma gnóstico, o Livro dos Mortos Tibetano e o hemisfério direito do cérebro, num sincretismo onde todas as mitologias e religiões se fundiam com a ciência e que deixava seus interlocutores atordoados com a velocidade com que era capaz de mudar o quadro de referência. E não obstante, ao morrer, no dia 02 de março de 1982, vítima de lesões pancreáticas agudas, continuava tão sem respostas quanto no princípio.
Qualquer que seja a explicação, é o episódio mais estranho de uma biografia repleta de episódios estranhos, e provavelmente o acontecimento mais bizarro de toda a história da ficção científica. Foi a inspiração direta dos quatro últimos romances de Dick - Valis, A Invasão Divina e A Transmigração de Timothy Archer (que formam a chamada Trilogia de Valis), mais Radio Free Albemuth, escrito antes mas só publicado postumamente -, além de um livro-homenagem de Michael Bishop, Philip K. Dick is Dead, Alas!, e de uma história em quadrinhos de Robert Crumb, A Experiência Religiosa de Philip K. Dick.
Em Radio Free Albemuth e Valis, Dick aparece em carne e osso como um dos personagens da história - no primeiro, o Dick de uma realidade alternativa, onde Nixon nunca foi derrubado pelo caso Watergate, e no segundo, em um retrato autobiográfico impiedosamente honesto, que chega às raias da crueldade. Os críticos, é claro, logo se puseram a elogiar a pós-modernidade desse recurso, que tornava nebulosa a separação entre ficção e realidade. A verdade é que, se essa distinção nunca havia sido muito clara para Dick, ela ruiu de vez com o Apocalipse de VALIS. De repente, era como se ele tivesse se tornado um personagem de suas próprias histórias: "Meu Deus", escreveu ele em 1978, "minha vida - quer dizer, minha experiência de 02/74-03/74 - é exatamente como o plot de qualquer um de minhas dezenas de romances e contos. Até mesmo as memórias falsas & identidade. Eu sou o protagonista de um dos livros de PKD, saem os EUA de 1974, entra a Roma antiga & com ela, a personalidade de Tomás & as verdadeiras memórias. Cristo! Uma mistura de 'Impostor', 'Joint' & 'Maze' - se não for também de 'Ubik'."
E tudo começou com um simples dente do siso.
O Império nunca acabou. - Era uma tarde de fevereiro de 1974 e Dick estava na sala de sua casa, sofrendo as agonias de uma excruciante dor na boca. Naquela manhã, ele havia feito uma cirurgia para extrair o dente do siso. Ainda sentia os efeitos residuais da injeção de pentotal que recebera à guisa de anestesia, mas a dor havia voltado com tudo. Ele pegou o telefone e encomendou anestésicos para a farmácia. Minutos depois, sua encomenda era entregue por uma garota de cabelos negros que era quase uma encarnação da dark haired girl que obsedava os livros de Dick com uma presença constante, uma figura da anima inspirada numa idealização de sua falecida irmã gêmea, Jane. Mas não foi a beleza da moça que capturou o olhar de Dick, e sim a corrente que ela usava no pescoço, com um pingente em forma de peixe estilizado que era o símbolo dos primitivos cristãos. A luz do Sol fazia com que o pingente emitisse centelhas douradas, que ofuscaram Dick e serviram como gatilho para que ele entrasse em um estado alterado de consciência. Dick viu-se atingido por um raio de luz cor-de-rosa e pôs-se a alucinar intensamente.
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"Uma idéia incômoda" - escreveu Elias Canetti em Massa e Poder - "que, além de um certo ponto determinado do tempo, a história não foi mais real. Sem se dar conta disso, a totalidade do gênero humano repentinamente teria deixado a realidade. Tudo o que seria passado desde então não seria mais absolutamente verdade, mas nós não poderíamos nos dar conta disso. Nossa tarefa e nosso dever no presente seriam descobrir esse ponto e, enquanto não o tivéssemos, seria-nos preciso perseverar na destruição atual." Essas palavras, embora escritas a respeito de outra coisa completamente diferente, são um bom resumo da visão de Dick - a primeira de muitas que se seguiriam nos dois meses seguintes.
A impressão de Dick foi de que o tempo real havia se imobilizado por volta do ano 50 d.C. e de que a história transcorrida depois disso seria uma sucessão de acontecimentos ilusórios passados no interior de um falso tempo. De acordo com essa sensação, a mente de Dick viu-se invadida por imagens dos primeiros tempos da era cristã. Como ele escreveu acima, a Los Angeles de 1974 deu lugar à Roma antiga e ele viu a si mesmo como um cristão chamado Tomás, que estava preso, à espera de ser garroteado pelas autoridades romanas. Nem sequer seus pensamentos eram mais em inglês, mas em uma mistura de latim e uma forma de grego que ele desconhecia completamente, mas que sua atual esposa, Tessa, uma estudante de línguas, depois reconheceu como koiné, o dialeto usado pelos primitivos cristãos na época de Paulo.
Desde esse dia, Dick passou a sentir a presença de Tomás o tempo todo dentro de sua cabeça. Algumas vezes, como o personagem de "The Shadow Out of Time", de Lovecraft, Dick e Tomás trocavam de lugar. Dick via-se transportado para os primórdios do cristianismo, enquanto seu corpo era ocupado por um homem que acreditava-se perseguido pelas autoridades por ser cristão e para o qual o mundo moderno era absolutamente incompreensível. Vista pelos olhos de Tomás, a civilização contemporânea revelava-se como uma conspiração dos mesmos agentes do mal que, no passado, haviam insuflado os romanos contra os seguidores de Cristo. Dick resume essa impressão com uma frase que é repetida ao longo de Valis como um leitmotiv: "O Império nunca acabou."
Nem sempre, porém, ele identificava seu alter ego como Tomás. Vez por outra, referia-se a ele como uma entidade espiritual que Dick chamava de Firebright, e outras como sendo ninguém menos que Simão, o Mago, um dos primeiros líderes gnósticos, mencionado nos Atos dos Apóstolos por ter batido de frente com o apóstolo Pedro. De fato, o conteúdo gnóstico das visões de Dick é bastante evidente e ele próprio foi o primeiro a ressaltar esse ponto. Como os gnósticos, Dick identificava a gnose à anamnese platônica, mas interpretava-o em um contexto mais familiar a um escritor de ficção científica: "O signo do peixe (dourado) leva você a se lembrar. Lembrar o quê? Isto é Gnóstico. Suas origens celestiais; isso tem a ver com o DNA, porque a memória está localizada no DNA (memória filogenética). Memórias muito antigas, predando esta vida, são deflagradas. [...] Você se lembra de sua real natureza. O que quer dizer origem (das estrelas). Die Zeit is da! A Gnose Gnóstica: Você está aqui neste mundo na condição de alguém que foi jogado, mas você não é deste mundo."
Ao explicar suas visões como memórias filogenéticas gravadas no DNA, Dick provavelmente estava se referindo à teoria junguiana dos arquétipos. Explicar os arquétipos como estruturas transmitidas dos antepassados por meio da hereditariedade foi a primeira hipótese proposta por Jung ao descobrir o inconsciente coletivo, uma opinião que ainda hoje tem seus defensores. Essa hipótese, no entanto, esbarra no fato de que, até onde a biologia conseguiu determinar, não existe nenhuma memória genética, e Jung mesmo acabou abrindo mão de uma explicação biológica para os arquétipos.
Uma perturbação no campo da realidade. - Memórias gravadas no DNA ou não, as visões e sonhos de Dick durante esse período estavam repletas de imagens arquetípicas, que de modo algum se restringiam a símbolos cristãos. Por exemplo, ele sonhava constantemente com dragões, que ele descrevia como "monstros voadores com pescoço de cavalo", que desciam do céu para agarrar Dick que, nos sonhos, era um menino vivendo em uma tribo pré-histórica. "Uma noite", conta a mulher de Dick, "eu acordei com o som de um enorme réptil silvando. Sentei e vi Phil deitado ali, ainda dormindo, sibilando. Com medo de tocá-lo, chamei-o pelo nome. Eu estava com medo e ficava mais assustada a cada segundo que passava. Sentia que não era Phil que estava silvando, mas algum animal sem mente que havia tomado seu corpo." Depois de algum tempo, continua Tessa, Dick parou de sibilar. "Ele chorou um pouco e começou a rezar em latim, Libera me Domine." Então, mergulhou em um sono profundo. Tessa, compreensivelmente, não conseguiu mais pregar o olho.
O dramático clímax dessas experiências veio na noite de 02 de março de 1974. Dick estava se virando na cama com um ataque de insônia que já durava cinco dias. Meus Vinte Fiéis Leitores, que aterrisaram aqui vindos do http://atirador.zip.net, certamente vão se lembrar de que, para alcançar a imortalidade, Gilgamesh foi obrigado a passar sete noites sem dormir (e falhou). Analisando essa passagem da Epopéia de Gilgamesh, chegamos à conclusão de que ela provavelmente se relaciona à ativação dos chakras e, assim, não é de surpreender que o que aconteceu com Dick a seguir seja tão semelhante aos relatos antigos e modernos sobre o despertar involuntário da Kundalini:
Então, [...] subitamente comecei a ver luzes rodopiantes que se moviam para longe com tal velocidade - e eram instantaneamente substituídas - que me forçaram a acordar totalmente. Por quase oito, continuei a ver esses assustadores vórtices de luz, se é essa a palavra [...]. O mais doloroso era a rapidez dos meus pensamentos, que pareciam estar sincronizados com as luzes; era como se eu estivesse me movendo e as luzes estivessem paradas - eu me sentia como se estivesse correndo à velocidade da luz, não mais deitado ao lado da minha esposa em nossa cama. Minha ansiedade era inacreditável.
Uma semana depois, as luzes voltaram:
Desta vez eu vi pinturas abstratas modernas perfeitamente formadas, que depois identifiquei nos livros de arte como sendo do tipo que Kandinsky desenvolveu. Havia literalmente centenas de milhares delas; substituíam-se umas às outras a uma velocidade atordoante [...]. Reconheci os estilos de Paul Klee e um ou dois dos vários períodos de Picasso. [...] Assim, eu passei mais de oito horas desfrutando uma das mais belas, excitantes e comoventes visões que jamais tive, consciente de que era um milagre. [...] Eu não era o autor dessas figuras. Basta a quantidade delas para provar isso.
Dick tinha a nítida impressão de que essas imagens não eram figuras aleatórias, mas possuíam um sentido que lhe escapava. E é aqui que a porca começa a torcer o rabo, porque a primeira coisa que lhe ocorreu era de que estivesse sendo alvo de uma experiência psicológica soviética. Já eram os primeiros indícios do quadro paranóico que encerraria essa fase de sua vida com uma nota melancólica.
Antes de chegar a esse ponto, porém, os fenômenos não só continuaram como evoluíram. Aos poucos, os padrões geométricos abstratos foram dando lugar a figuras femininas de aspecto divino, que Dick sabia serem personificações de sua anima, e ele começou a ouvir uma voz em sua cabeça que se identificou (ou que Dick identificou, as diferentes versões que ele apresentou são contraditórias nesse ponto) como sendo de uma inteligência artificial em órbita da Terra. Chamou esse computador alienígena (ou o computador alienígena se apresentou como sendo, as diferentes versões etc.) de VALIS, acrônimo para Vast Active Living Intelligence System, ou Amplo Sistema Vivo de Inteligência, que em seu romance homônimo definiu nos seguintes termos: "Uma perturbação no campo da realidade em que um vórtice neguentrópico espontâneo e autofiscalizado se forma, tendendo progressivamente a suprassumir e incorporar o seu ambiente em arranjos de informação. Caracterizado por quase-consciência, objetividade, inteligência, crescimento e uma coerência armilar." O romance também aproveita uma série de sonhos nos quais a construção de VALIS era atribuída a uma espécie extraterrestre humanóide, dotada de três olhos nos quais não é difícil reconhecer o Terceiro Olho da ioga, reforçando ainda mais o elo entre o Apocalipse de VALIS e um despertar desastroso da Kundalini.
E então, a idéia paranóica de que os russos estavam fazendo experiências com a sua mente evoluiu para uma verdadeira mania de perseguição, quando Dick cismou que Frederic Jameson e Darko Suvin, dois críticos literários da revista Science Fiction Studies que estudavam sua obra sob a ótica marxista (pela qual, diga-se de passagem, Dick mostrava mais do que uma ligeira simpatia em tempos menos insanos), eram agentes da KGB enviados para cooptá-lo. Estava tão convencido disso que chegou a enviar uma série de cartas ao FBI denunciando a suposta conspiração. E esse foi o fim do episódio de VALIS. As visões e vozes foram se enfraquecendo até desaparecerem no mesmo ritmo com que a saúde física e mental de Dick ia se deteriorando até chegar o triste fim desse Policarpo Quaresma da ficção científica.
Revelação e paranóia. - O que pensar de toda essa história? A resposta mais óbvia é a de que Philip K. Dick se tornou psicótico, e não foram poucos os que foram por aí, especialmente num meio tão propício ao racionalismo quanto a ficção científica. Feliz ou infelizmente, as respostas mais óbvias raramente são as mais verdadeiras, e o Apocalipse de Valis tem alguns elementos que tornam difícil a conclusão de que Dick poderia ter se curado de sua mania religiosa se alguém tivesse lhe receitado um simples Gardenal.
Mencionamos acima que, quando possuído pela personalidade de Tomás, Dick falava em grego koiné, idioma a respeito do qual não tinha o menor conhecimento. A glossolalia é um fenômeno típico tanto das experiências religiosas autênticas (é, de fato, um dos critérios pelos quais a Igreja as reconhece) quanto da esquizofrenia, mas com uma diferença nada sutil: no primeiro caso, o sujeito realmente fala uma língua estrangeira que ele não conhece mas que pode ser identificada, ao passo que no segundo, o paciente pronuncia uma algaravia ininteligível que apenas simula uma outra língua. O koiné de Dick claramente se enquadra na primeira categoria. Além disso, numa das ocasiões em que se manifestou, a voz advertiu Dick de que seu filho Christopher corria risco de vida e devia ser levado imediatamente ao hospital. Tessa não sabia se devia ou não acreditar na voz mas, pelo sim, pelo não, cedeu aos apelos do marido. No hospital, os médicos descobriram que o menino tinha uma hérnia não diagnosticada que estava prestes a estrangular. De outra vez, Dick viu um de seus gatos ser atingido pelo raio de luz cor-de-rosa que sempre acompanhava essas manifestações e, poucos dias depois, o animal morreu de câncer. Nada disso prova coisa alguma, evidentemente, mas pelo menos sugere que o Apocalipse de VALIS não era uma fabricação total da mente de Dick e talvez tivesse algum aspecto objetivo.
Por outro lado, a menos que você pague um tributo mensal aos deuses-astronautas, a idéia de revelações místicas transmitidas por uma inteligência artificial alienígena é um pouco difícil de engolir, especialmente quando vem a reboque com ETs de três olhos. E a mania de perseguição que Dick desenvolveu mais tarde não deixa margem a dúvidas de que em algum momento ele cruzou a linha da insanidade. A grande questão é - em qual momento? Foi a loucura de Dick que produziu o Apocalipse de VALIS ou o Apocalipse de VALIS que causou a loucura de Dick?
Talvez seja um erro achar que as duas alternativas são mutuamente excludentes. A presença de imagens e conceitos religiosos na estrutura dos delírios psicóticos já é conhecida há muito tempo pela psiquiatria e, na verdade, é a justificativa à qual se agarram os racionalistas de plantão para dizer que Santa Teresa de Ávila não passava de uma esquizofrênica. A pobreza de espírito dos racionalistas pode ser uma bem-aventurança para eles, mas não tem lá grande utilidade para quem quer compreender os vínculos entre esses dois tipos de experiência. Uma perspectiva mais rica, porém, é apresentada por James Hillman, psicólogo pós-junguiano e criador da psicologia arquetípica, em seu curto mas precioso ensaio sobre a Paranóia:
"Quando os delírios paranóicos são religiosos no conteúdo e no estilo, então a religião oferece abrigo à paranóia. O Deus na desordem tanto traz quanto leva embora; mas se somos fiéis, como diz Boisen, ao próprio delírio, o Deus não é expelido com a doença. A recuperação significa recuperar o divino das entranhas da desordem, observando que seu conteúdo é autenticamente religioso. Esses delírios podem, a posteriori através de análise, ser psicogênicos; fenomenologicamente, contudo, eles são teogênicos, originários em Deus. Não são apenas mentais, mas também noéticos. Podemos atribuí-los não somente à psicodinâmica invisível (inconsciente) da mente humana, mas também à dinâmica da própria ordem invisível."
A posição que Hillman defende nesse livro é a de que o núcleo dos delírios religiosos é mesmo uma experiência religiosa autêntica (no sentido existencial, mais do que epistemológico). O que transtorna a vida da pessoa e a empurra na direção da loucura é a dificuldade de assimilar o conteúdo da experiência, que se apresenta como algo estranho e, nesse sentido, alienígena. Lembremos que alienígena vem do latim alienus, "o que causa estranheza", e reencontraremos aquela mesma das Unheimlich que, como vimos no post anterior, é o sentimento que está na origem da literatura de Dick. Pois bem, de alienus também veio a palavra alienação que, na virada do século XIX para o XX, era largamente utilizado pelos médicos para designar a loucura - eis porque o conto mais famoso de Machado de Assis se chama "O Alienista". Mas alienação tem também um sentido filosófico, que se refere à separação entre a consciência do homem e a verdadeira essência (seja dele mesmo, seja da realidade) - isto é, a raiz metafísica do gnosticismo que é a base da visão-de-mundo de Dick. ("I have been accused of holding Gnostic ideas", declarou ele certa vez. "I guess I do.") O estranhamento perante o que se apresenta a nós como sendo a realidade é, assim, o nexo comum entre a literatura de Philip K. Dick, a experiência mística que o engolfou e o delírio em que acabou por submergir.
O espírito e a letra. - Mas de onde vem a dificuldade de assimilar a experiência, fazendo com que ela degenere em loucura? Foi a pergunta que Hillman se colocou em seu ensaio. Acabou encontrando a resposta em John Perceval. Filho do ex-Primeiro Ministro Britânico Spencer Perceval, John Perceval foi internado em 1831, vítima de um surto psicótico do qual se curou espontaneamente três anos depois. Em sua autobiografia, citada por Hillman, Perceval atribui seu sucesso em superar a loucura a uma descoberta que lança muita luz sobre os motivos pelos quais Dick não teve a mesma sorte:
"Suspeito que muitos dos delírios que... afetam as pessoas insanas consistem no fato de confundirem um estilo de discurso figurativo ou poético com um literal... o espírito fala poeticamente, mas o homem o entende literalmente. Assim, podemos ouvir que um lunático declara ser feito de ferro, e que nada pode quebrá-lo... O sentido do espírito é que esse homem é forte como o ferro... mas o lunático assume o sentido literal..." E mais adiante: "Assim, a demência é também tomar uma ordem que é espiritual por outra que é literal - uma ordem que é mental por outra que é física (...)."
Em outras palavras, a experiência do louco e a do místico é exatamente a mesma. Mas, enquanto este último tem consciência do caráter simbólico de suas visões, o primeiro as toma ao pé-da-letra. Como a psicanálise foi a primeira a descobrir em tempos recentes, o que Perceval chama de espírito (e que os psicólogos conhecem como o inconsciente, sem que se saiba qual das duas designações é a mais correta) se manifesta através de imagens simbólicas, na maioria dos casos com um caráter arquetípico - por exemplo, os dragões de Dick. A porta para a loucura se abre quando essa natureza metafórica não é reconhecida. Parafraseando "A Day In The Life", que Dick adorava (estava ouvindo Sgt. Peppers quando a garota da farmácia tocou a campainha), você sobe as escadas e mergulha num sonho.
"Um dos traços do pensamento esquizóide", escreve o crítico argentino Pablo Capana, "é precisamente a literalidade, que consiste em visualizar as metáforas em termos 'concretos', da mesma forma que o menino antes da adolescência. Dick costumava brincar com essa tendência para exorcizar algo que talvez temesse reconhecer em si mesmo. A literalidade era para ele um traço negativo do autista e do esquizóide (a quem diferenciava claramente do esquizofrênico), que tinha seu paralelo na insensibilidade afetiva." Capana lembra que em um dos primeiros contos de Dick, "The Eyes Have It", de 1953, o protagonista é incapaz de entender o sentido figurado. Assim, uma banal metáfora que ele encontra em um livro - "lentamente, seus olhos rolaram pela sala" - é o suficiente para desencadear um verdadeiro surto delirante:
A referência era claramente a uma espécie inumana de incríveis propriedades, não nascida na Terra. Uma espécie, me apresso a apontar, costumeiramente disfarçada como seres humanos normais. Seu disfarce, contudo, tornava-se transparente diante das seguintes observações do autor. Ficava claro que o autor sabia de tudo. Sabia de tudo - e encarava isso com calma. A linha (e ainda agora, eu estremeço ao lembrar) dizia:
...lentamente, seus olhos rolaram pela sala.
Difusos arrepios me assaltaram. Tentei visualizar os olhos. Eles rolavam como dados? A passagem indicava que não; eles pareciam se mover através do ar, não sobre a superfície. Ao que tudo indicava, rapidamente. Ninguém na história se mostrava surpreso. Foi o que me fez perceber tudo.
Capana nota que esse é um tema recorrente na obra de Dick, o qual várias vezes se refere ao Teste dos Provérbios de Benjamin, uma ferramenta psiquiátrica usada para identificar a tendência dos esquizofrênicos a encarar as metáforas literalmente. Em We Can Build You e The Transmigration of Timothy Archer, ele diagnostica a esquizofrenia dos personagens; em Do Androids Dream of Electric Sheep?, serve para identificar os andróides. Esses personagens refletem um traço de personalidade que o crítico reconhece no próprio autor: "a imaginação de Dick tende a visualizar as metáforas tanto quanto materializar as abstrações e dogmas. Dick entende a 'transubstanciação' aristotélico-tomista como a impregnação do universo físico por Deus. Todos dizem que 'a publicidade é uma praga': Dick imagina anúncios que perseguem o consumidor como moscas (The Simulacra). A metáfora do Deus ex machina torna-se uma realidade tangível em Our Friends from Frolix-8: a divindade desce à Terra em uma máquina espacial."
Dessa forma, se criaturas de três olhos lhe apareciam numa visão, para Dick só podiam ser alienígenas. Se sonhava com dragões, eram lembranças atávicas de uma época em que os dragões realmente existiam. A voz feminina de timbre metálico que ouvia em sua cabeça não podia ser outra coisa senão uma inteligência artificial. Até mesmo a gnose e a anamnese platônica transformavam-se para ele em informações codificadas no DNA. Sua intuição de que o Império nunca acabou provavelmente indicava o que os gnósticos valentinianos conheciam como sístase, o sistema de padrões cognitivos que distorce nossa percepção da realidade e que é manipulado pela classe dominante para servir a seus próprios interesses; para Dick, porém, significava que continuávamos vivendo nos tempos da Roma antiga.
São Paulo dizia que a letra mata, mas o espírito vivifica. Não importa o quanto Dick mobilizasse seus conhecimentos de mitologia, religião, ciência ou filosofia, ele jamais conseguiria compreender corretamente as experiências pelas quais passou, porque o que estava errado era seu enfoque e isso desde o princípio. O espírito lhe falava poeticamente, mas Dick o entendia literalmente.
E foi esse entendimento que no fim o matou.
Posted by Malprg in A experiência mística, Ficção Científica, Filosofia, Gn
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